E cachorros…

4 de outubro de 2019
Felipe Moreno

Egrégora de mendigos: parte 2

Foram três dias vadiando, conhecendo gente e paisagens em Punta del Diablo. Disse gente e já me corrijo: algumas pessoas e muitos cachorros – muchos perros

É que a pacata cidade do litoral uruguaio parece abrigar mais cachorros que cidadãos. Andam em bando e estão por todos os lados, ora camuflados atrás das coisas, ora atirados no meio das calçadas e ruas.

Crédito: Felipe Moreno

São, sem exceção, enormes – mesmo sem donos e se alimentando de restos, os cães de rua não somente do Uruguai, mas de todos os países vizinhos do Brasil, têm um porte de dar inveja aos nossos vira-latas vagabundos, mirrados, safados e famintos. 

E, apesar do tipo físico ameaçador, os vira-latas daqui são todos mansos e simpáticos. 

Curioso foi perceber que, dos três dias caminhando pela cidade, uma multidão desses perros, cada um em seu momento, aleatoriamente, nos acompanhou e criou um laço de amizade. 

Ainda no Chuí, quando eu, Caio, Jaicle e outros amigos que havíamos acabado de conhecer na rodoviária fomos acampar embaixo de um galpão desativado, tarde da noite, dois cachorros, supostamente um casal, nos acompanharam por aproximadamente dois quilômetros, enfrentando chuva e frio. Não obstantes, a cadela e seu marido, este já velhinho e cansado, passaram a noite com a gente, em frente às barracas, fazendo a nossa segurança, atentos a qualquer sinal de perigo. 


Crédito; Felipe Moreno

E eu havia comentado com o Caio, ainda em Florianópolis, sobre a escola cínica – corrente filosófica que tem como maior expoente Diógenes de Sinope, o Cão

Ele não conhecia o pensamento cínico e se entusiasmou depois que eu o descrevi brevemente.  Talvez fosse uma previsão de que, muito em breve, nós mesmos estaríamos experimentando na pele uma amostra pós-moderna do cinismo – passando os dias nas ruas, sobrevivendo nas mínimas condições, se contentando com aquilo que muitos consideram precariedade, tornando sincera as nossas vontades; e, principalmente, rodeado de cães, nossos sentinelas e companheiros.

Crédito; Felipe Moreno

Quando a simpatia desses animais por nós, a obsessão em nos seguir por onde quer estivéssemos indo, se tornou evidente – e considerando ainda que os cachorros de rua costumam criar uma fidelidade absoluta com os moradores de rua – o próprio Caio, brincando, lançou: “Estamos vivendo numa egrégora de mendigos”. Eu gargalhei; e depois achei a definição genial. Mais que isso: a frase foi de um contraste sublime. “Vivendo numa egrégora de mendigos”. É de uma extraordinária e aparente – apenas aparente – oposição. De uma tensão tão bela e forte quanto, sei lá, “Vagabundos Iluminados”.

Punta del Diablo, Uruguai – 06 de maio de 2018

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