Diário do mochilão

20 de julho de 2019
Felipe Moreno

Egrégora de mendigos: parte 1

O ônibus nos largou no Chuí, fronteira do Brasil com o Uruguai, às duas da manhã.

Era como uma cidade cenográfica de faroeste cujos personagens haviam fugido. (A metáfora ruim com faroeste agregará mais sentido quando eu usar as expressões “arma”, “bigode” e “botas de couro”.) 

Frio e silêncio. Nossas fomes de estradeiros – a última refeição tinha sido um lanche dado pela empresa de ônibus, às 22h. 

Entusiasmados de termos chegado, porém tédio de ter sido no meio da madrugada.

Crédito: Felipe Moreno

Invadimos uma galeria comercial cheia de boxes vazios. Escolhemos um box qualquer e fizemos dele nosso dormitório. Nos enfiamos no saco de dormir e colocamos dois despertadores, um em cada celular, para às 6h. 

Chão duro e filetes de vento gelado batendo no rosto. Na dificuldade de pegar no sono, lá ia eu embarcando nas minhas silenciosas explanações filosóficas. 

Pensei, como sempre, nas diferenças entre a nossa espécie e qualquer outra. Concluí que, até na hora de dormir, o ser humano é mimado – eu, com três casacos, revestido num saco de dormir, ainda reclamava do frio de da falta de conforto; enquanto que, lá fora, no meio da pracinha central, um cachorro de rua desnudo dormia o sono dos justos.

Meu sono foi interrompido por duas vezes: uma por mim mesmo, para fazer xixi, e a outra pelo Leôncio do Chuí, de botas de couro e arma. Era o segurança da galeria, gordo e bigodudo, a cara do personagem do Pica-Pau, nos enxotando dali a meio berro. 

Uma voz que disse em gravíssimo sotaque gaúcho “Bá, não façam mais isso”, mais uma insinuação de sacar a garrucha da cintura – e eu e Caio já tínhamos zarpado dali feito flechas, gaguejando mil pedidos de desculpas. 

Crédito: Felipe Moreno

Sentamos no banco da pracinha que divide a Avenida Brasil da Avenida Uruguai (o engraçado é que a Avenida Uruguai fica do lado brasileiro e a Avenida Brasil, do lado uruguaio. Uma homenagem diplomática que um país concede ao outro na fronteira da paz). 

Clareava o dia e um cachorro de rua veio brincar comigo. Éramos eu, Caio e o cachorro, bem em cima da linha imaginária que divide dois países. Eu e Caio vindo de longe, ali de passagem. Aquele cachorro, dali mesmo, um privilegiado – um cão de dupla nacionalidade.

Cabo Polonio, Uruguai – 08 de maio de 2018


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