Egrégora de mendigos: parte 4
Tédio e desesperança que levam à criatividade, placa de quilometragem na nossa frente, pedrinhas no chão – e estava aberta a competição de tiro ao alvo. Disputa acirradíssima entre o trio.
Todos estes textos estão sendo escritos num caderninho cuja estampa é um desenho de crianças brincando no parquinho. Me custou R$3,30 e eu o comprei ainda no Brasil, dias antes de atravessar a fronteira.
Por conveniência, segurança e liberdade, eu não trouxe meu principal instrumento de trabalho: o notebook. Mas estou me virando bem com a caneta bic, o caderninho do jardim de infância – que já está todo estropiado – e o exercício de me forçar a escrever à mão.
Falando em infância, todos estes dias de acampamento no meio do mato, caronas, ócio, contemplação de cenários inéditos e, principalmente, a convivência em tempo integral com dois amigos, tem me resgatado o sabor da inocência e da espontaneidade de ser uma criança. Tenho tido constantes lapsos de uma vida infantil e livre.
Se sensíveis e atentos aos momentos mais triviais da nossa rotina, nos damos conta de que boa parte das horas estão sendo gastas com atividades lúdicas das mais simples e ingênuas – e o restante do dia a gente corre atrás de água e caça a comida com o melhor custo-benefício.
Alguns domingos atrás, por exemplo. Depois de duas horas caminhando embaixo de um sol de meio-dia, as costas já arqueadas de tanto peso, tivemos ainda que pastar por mais duas horas à beira da estrada, pedindo carona. O estômago roncando e o rosto impregnado da poeira levantada por todos os carros que passavam e recusavam nossos pedidos.
Também, pudera: três homens estrangeiros, carregados de malas, querendo carona – a barrinha da dificuldade apitava num grau elevado.
Tédio e desesperança. O silêncio da pista que não recebia um carro durante minutos. A quase certeza de ter que acampar às margens da rodovia. Tédio e desesperança que levam à criatividade: placa de quilometragem na nossa frente, pedrinhas no chão – e estava aberta a competição de tiro ao alvo. Disputa acirradíssima entre o trio.
Humildade de lado, eu fui o único que consegui acertar o alvo não com arremessos, mas com chutes. Me destaquei então como atleta caroneiro na modalidade tiro ao alvo à beira de estrada. Um marco fulminante e internacional.
Meia hora depois, para a nossa incredulidade, parava uma caminhonete e o motorista falava para os três subirem na caçamba.
Com o vento forte batendo na cara, os cabelos esvoaçando, fomos até a próxima rota batendo palmas e improvisando rima em espanhol – um desastre.
Agora, por mais inóspita que seja a rota, basta uma placa e algumas pedrinhas no asfalto, e pronto: podemos, sem pressa ou tédio, esperar até cinco, seis horas pela boa vontade e compaixão de um motorista.
Águas Dulces, Uruguai – 07 de maio de 2018