Uma Buenos Aires de pai para filho

15 de outubro de 2020
Felipe Moreno
(Egrégora de mendigos – diário do mochilão, parte 9)

Chegamos em Buenos Aires de balsa. Uma hora de viagem, de Colônia do Sacramento, Uruguai, até à capital argentina. O barco balançando contra o sol, à frente o Rio da Prata, imenso, e, ao fundo, os primeiros sinais de uma Buenos Aires que eu tanto sonhava conhecer. 

Foto: Felipe Moreno

Olhava a vista e não pensava em nada — quem bate os olhos em águas extensas rapidamente consegue silenciar o ruído mental. Porém, antes da paisagem que era somente água, céu azul e luz do sol, pensei em perguntar se tinha Wi-Fi.Num lapso de bom-senso, decidi abrir mão da conexão (que, na verdade, não tinha).

De cabeça vazia eu contemplei a janela por um tempo e, quando me surgiu o primeiro pensamento, esse pensamento foi um insight, um estalo.
Era uma tarde linda de outono, 16 de maio de 2018; e, há quarenta anos, naquela mesma Buenos Aires, meu pai desembarcava de ônibus, junto com os amigos, numa viagem muito semelhante a que faço agora.

Foi o único país que visitou durante toda a vida. Sempre admirou o argentino e, em 1978, aos 20 anos, viu a mesma Argentina ser anfitriãe campeã da Copa do Mundo. A nação vivia o auge da ditadura e, distante dos holofotes e das câmeras de televisão, jovens militantes que resistiam ao regime eramraptados em becos escuros e depois “desapareciam” para nunca mais ser encontrados.

Depois do seu falecimento, mexendo nas suas coisas, encontreialgumas fotos dessa viagem. Uma, em específico, foi tirada justamente na frente do Obelisco. Calça boca de sino, cabelos longos e cacheados, magricela — e hoje eu me dou conta que nada mais sou que sua versão atualizada. Guardo todas essas fotografias comigo e, agora, num acesso de saudosismo, fico triste por saber que meus filhos, provavelmente, não conservarão essa tradição. O digital vai matar de vez as caixas no fundo do armário, com cheiro de mofo, e que contêm, através de imagens e outros registros, as histórias das nossas vidas.

Foto: Felipe Moreno

16 de maio de 2018: quarenta anos depois do meu pai também estar ali. 16 de maio de 2018: há exatos cinco meses anteriores a esse dia, 16 de dezembro de 2017, ele morria. Hoje, 07 de junho de 2018, dia em que publico este texto: também édia do seu aniversário. Faria 60 anos. Nessa ligação de dias, datas e acontecimentos, nasce o memorável.

Pois não fossem as lembranças, as datas, a sensação de que a vida é cíclica e se repete (mas que cada repetição é, contraditoriamente, diferente uma da outra); não fossem os insights que se tem depois de uma olhadela em silêncio na janela, a vida seria somente essa dispersão de incidentes que não se justificam para nada.

As recordações e as coincidências — ou talvez aquilo que é ainda maior que a mera coincidência — colorem o jogo dos acontecimentos absurdos. Pensei, depois de tudo isso, que a vida só tem sentido na memória.

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