O vento frio me traz memórias

11 de março de 2021
Yngrid Corsini

Acho incrivelmente surpreendente e (abusando da minha licença poética) surpreendentemente incrível, como as nossa memória funciona. Quer dizer, da maneira como ela funciona, como o cérebro humano é capaz de guardar momentos grandes e situações muito pequenas e como qualquer coisa pode ser o estímulo para uma lembrança guardada na estante.  Digo isso pois esses dias acordei 5 horas da manhã, o dia estava nublado e com o vento frio. Abri a janela para deixar o vento frio entrar e curtir um pouco daquela brisa geladinha, rara por aqui no verão.

Em menos de um minuto voei. Voei para muito longe da minha cama, em Bonito, no ano de 2021. Fui para diversos lugares guardados na minha memória de situações em que a brisa da aurora me abraçou. 

Não em ordem cronológica, lembrei de quando eu acordava antes do sol nascer para encontrar alguns turistas que estavam em Santiago esperando a van para subirmos juntos o Valle Nevado

Teve esse dia, que fui até o hostel Che Lagarto e para chegar lá é preciso atravessar uma rua de paralelepípedos do centro de Santiago, passar próximo o morro de Santa Lucía. As ruas com aquele agito da manhã, entretanto ainda sem a luz do sol, que saia atrás da Cordilheira sem muita pressa ou interesse. 

Foto: Yngrid Corsini

Cheguei no local e para me aquecer tomei um capuccino, do Marley Coffee, inclusive descobri que a família Marley, além de ter tradição no reggae tem tradição também no café, com fazendas na Etiópia e essa marca de café cujo copo estava nas minhas mãos. Aquela alegria fina de estar vivo e vivendo me tomou e fiz questão de tomar nota. 

Foto: Yngrid Corsini

Lembro também de quando em Lisboa eu tive que sair para comprar uma embalagem a vácuo para poder conseguir organizar a mala e trazer aquele monte de coisa que eu tinha comprado na viagem. Não era de manhã, era tardezinha, mas parecia de manhã… Estava nublado e um frio contido, se é que isso existe. Era para eu entrar nas lojinhas dos chineses procurando a tal embalagem, mas não consegui. 

Foto: Yngrid Corsini

A cor do céu me lembrou do dia que cheguei, e lá estava eu, prestes a ir embora. Caminhei sem pressa por essa rua, que eu já me habituara, por ser perto do local onde eu estava. Reparei nos cafés, nas lojas dos chineses, nos restaurantes e salões de beleza. Fui até que lembrei que tinha que voltar, como se a vida me chamasse de volta pra terra.

Tive que entrar correndo na primeira loja e me convencer de que com certeza aquela loja era a mais barata, pois depois de 40 dias de viagem na Europa pode ter certeza que o dinheiro já não está tão farto quanto gostaríamos. Eu troquei a economia pela lembrança desse último dia e não me arrependo. 

Lembrei também de um dia que estava sentada na cama do meu quarto, lá em Campo Grande, eu abri a janela do quarto e abri um livro que há muito gostaria de ler e nunca tinha parado para o fazer. “Bom da Espírito Santo” o nome do livro, e me marcou profundamente, não suas palavras, que não as lembro, mas sua essência, que até hoje carrego comigo. 

Nesse dia, enquanto eu lia, sentada na cama e tentando comer cada palavra daquele livro, um vento gelado encheu o quarto, a ponto de me fazer sentir frio e balançar levemente meu cabelo. Momento que tirei os olhos do livro e olhei para fora, me senti acompanhada. 

Foto: Yngrid Corsini

Sou realmente grata por poder ter uma caixa dentro de mim com tantos momentos preciosos que me fazem viver o ontem novamente hoje. Com alegria de estar viva e vivendo. 

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