Egrégora de mendigos: parte 1
O ônibus nos largou no Chuí, fronteira do Brasil com o Uruguai, às duas da manhã.
Era como uma cidade cenográfica de faroeste cujos personagens haviam fugido. (A metáfora ruim com faroeste agregará mais sentido quando eu usar as expressões “arma”, “bigode” e “botas de couro”.)
Frio e silêncio. Nossas fomes de estradeiros – a última refeição tinha sido um lanche dado pela empresa de ônibus, às 22h.
Entusiasmados de termos chegado, porém tédio de ter sido no meio da madrugada.
Invadimos uma galeria comercial cheia de boxes vazios. Escolhemos um box qualquer e fizemos dele nosso dormitório. Nos enfiamos no saco de dormir e colocamos dois despertadores, um em cada celular, para às 6h.
Chão duro e filetes de vento gelado batendo no rosto. Na dificuldade de pegar no sono, lá ia eu embarcando nas minhas silenciosas explanações filosóficas.
Pensei, como sempre, nas diferenças entre a nossa espécie e qualquer outra. Concluí que, até na hora de dormir, o ser humano é mimado – eu, com três casacos, revestido num saco de dormir, ainda reclamava do frio de da falta de conforto; enquanto que, lá fora, no meio da pracinha central, um cachorro de rua desnudo dormia o sono dos justos.
Meu sono foi interrompido por duas vezes: uma por mim mesmo, para fazer xixi, e a outra pelo Leôncio do Chuí, de botas de couro e arma. Era o segurança da galeria, gordo e bigodudo, a cara do personagem do Pica-Pau, nos enxotando dali a meio berro.
Uma voz que disse em gravíssimo sotaque gaúcho “Bá, não façam mais isso”, mais uma insinuação de sacar a garrucha da cintura – e eu e Caio já tínhamos zarpado dali feito flechas, gaguejando mil pedidos de desculpas.
Sentamos no banco da pracinha que divide a Avenida Brasil da Avenida Uruguai (o engraçado é que a Avenida Uruguai fica do lado brasileiro e a Avenida Brasil, do lado uruguaio. Uma homenagem diplomática que um país concede ao outro na fronteira da paz).
Clareava o dia e um cachorro de rua veio brincar comigo. Éramos eu, Caio e o cachorro, bem em cima da linha imaginária que divide dois países. Eu e Caio vindo de longe, ali de passagem. Aquele cachorro, dali mesmo, um privilegiado – um cão de dupla nacionalidade.
Cabo Polonio, Uruguai – 08 de maio de 2018