Confusão, filosofia e macarrão na fogueira

7 de dezembro de 2019
Felipe Moreno

Egrégora de mendigos: parte 3

Terminamos a noite concluindo o seguinte: toda a confusão, toda a perturbação e angústia do mundo derivam exclusivamente da espécie humana. Na vida em si, essas coisas não existem. Tais estados de espírito nascem e morrem enquanto vivemos; nós, sapiens, somos os geradores dos males da alma.

Qualquer outra espécie viva deste planeta transcorre sua jornada numa imperturbável bem-aventurança. A mente de um mamífero qualquer (sei lá, uma vaca sentada na grama, estática durante um dia inteiro) é fonte de infinita plenitude. Enquanto que preocupações, graves noções de tempo e espaço, divisões de “eu” e “mundo” etc, são fardos estritamente humanos. E tudo isso é a prole de nossas fissuras e angústias. 

Apesar de profunda, toda essa constatação também é óbvia. 

Crédito: Felipe Moreno

E eu nem sei bem por que disse tudo isso. Aliás, sei menos ainda os motivos para termos, naquela noite, chegado a esse fim. 

Agora penso ter sido o desfecho da confusão que aconteceu algumas horas antes. Eu e Jaicle quebramos um pau de assustar os vizinhos mais próximos, a centenas de metros de distância.

A causa foi banal – e a culpa foi minha, tudo começou com um erro meu. 

Crédito: Felipe Moreno

Seis da tarde e Punta del Diablo já era um breu só. Os três famintos. O combinado da noite era fazer fogueira e cozinhar. Macarrão com legumes. 

Compramos as coisas. Eu trouxe a sacola de macarrão e, assim que cheguei, larguei tudo na barraca. 

Difícil manter o fogo. Um livro especial nos ajudou a produzir vento: “Mil Platôs, volume 2”. Brincamos: “Até que enfim Deleuze e Guattari serviram para alguma coisa prática”. 

Braços cansados, tontos de fome. A água dá o primeiro sinal de ebulição. Cadê o macarrão? E a fome não me faz lembrar que está dentro da minha barraca. Jaicle me responsabiliza, eu nego. 

Ele sai para ver se eu havia deixado a sacola pelo caminho. Demora para voltar e, quando volta, traz mais um pacote de macarrão. E eu sei que é um pacote novo porque, instantes depois que ele se mandou, todo afobado, eu me dei conta da minha falha. 

Crédito: Felipe Moreno

Tarde demais: confusão armada. Famintos e inflamados, no meio do breu e da fumaça. Eu era o otário, o idiota. Jaicle era o afobado, o orgulhoso, dono da razão. Dois ofendidos e esfomeados. Enquanto Caio abanava o “Mil Platôs” e, no segundo de silêncio em que eu e Jaicle tomávamos fôlego, intermediava, tentava apaziguar a situação.

Macarrão finalmente pronto. Duas garfadas cada um e passava a panela. (Comida feita na fogueira é sempre mais gostosa!) 

Na segunda rodada, a comida já assentada no estômago e a paz, enfim, novamente instaurada. Pedido de desculpas e abraços. Reconciliação. 

Até Jaicle, três dias depois, perder (e agora perder de verdade) a sacola com o mesmo macarrão que ele havia comprado depois da suposta perda da primeira sacola. 

Nessa noite, fizemos apenas um humilde omelete e jantamos em silêncio. 

Somos três egos enormes no maior teste de nossas vidas. Seguimos…

Cabo Polonio, Uruguai – 08 de maio de 2018

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