Egrégora de mendigos: parte 3
Terminamos a noite concluindo o seguinte: toda a confusão, toda a perturbação e angústia do mundo derivam exclusivamente da espécie humana. Na vida em si, essas coisas não existem. Tais estados de espírito nascem e morrem enquanto vivemos; nós, sapiens, somos os geradores dos males da alma.
Qualquer outra espécie viva deste planeta transcorre sua jornada numa imperturbável bem-aventurança. A mente de um mamífero qualquer (sei lá, uma vaca sentada na grama, estática durante um dia inteiro) é fonte de infinita plenitude. Enquanto que preocupações, graves noções de tempo e espaço, divisões de “eu” e “mundo” etc, são fardos estritamente humanos. E tudo isso é a prole de nossas fissuras e angústias.
Apesar de profunda, toda essa constatação também é óbvia.
E eu nem sei bem por que disse tudo isso. Aliás, sei menos ainda os motivos para termos, naquela noite, chegado a esse fim.
Agora penso ter sido o desfecho da confusão que aconteceu algumas horas antes. Eu e Jaicle quebramos um pau de assustar os vizinhos mais próximos, a centenas de metros de distância.
A causa foi banal – e a culpa foi minha, tudo começou com um erro meu.
Seis da tarde e Punta del Diablo já era um breu só. Os três famintos. O combinado da noite era fazer fogueira e cozinhar. Macarrão com legumes.
Compramos as coisas. Eu trouxe a sacola de macarrão e, assim que cheguei, larguei tudo na barraca.
Difícil manter o fogo. Um livro especial nos ajudou a produzir vento: “Mil Platôs, volume 2”. Brincamos: “Até que enfim Deleuze e Guattari serviram para alguma coisa prática”.
Braços cansados, tontos de fome. A água dá o primeiro sinal de ebulição. Cadê o macarrão? E a fome não me faz lembrar que está dentro da minha barraca. Jaicle me responsabiliza, eu nego.
Ele sai para ver se eu havia deixado a sacola pelo caminho. Demora para voltar e, quando volta, traz mais um pacote de macarrão. E eu sei que é um pacote novo porque, instantes depois que ele se mandou, todo afobado, eu me dei conta da minha falha.
Tarde demais: confusão armada. Famintos e inflamados, no meio do breu e da fumaça. Eu era o otário, o idiota. Jaicle era o afobado, o orgulhoso, dono da razão. Dois ofendidos e esfomeados. Enquanto Caio abanava o “Mil Platôs” e, no segundo de silêncio em que eu e Jaicle tomávamos fôlego, intermediava, tentava apaziguar a situação.
Macarrão finalmente pronto. Duas garfadas cada um e passava a panela. (Comida feita na fogueira é sempre mais gostosa!)
Na segunda rodada, a comida já assentada no estômago e a paz, enfim, novamente instaurada. Pedido de desculpas e abraços. Reconciliação.
Até Jaicle, três dias depois, perder (e agora perder de verdade) a sacola com o mesmo macarrão que ele havia comprado depois da suposta perda da primeira sacola.
Nessa noite, fizemos apenas um humilde omelete e jantamos em silêncio.
Somos três egos enormes no maior teste de nossas vidas. Seguimos…
Cabo Polonio, Uruguai – 08 de maio de 2018