Achados e perdidos – Mochilão, parte 8

12 de setembro de 2020
Felipe Moreno

Diário de mochilão, parte 8 – Egrégora de mendigos

Em relação às precauções e cuidados com as coisas materiais durante um mochilão existe entre nós três uma diferença gradual: eu sou o velho, o chato, o prudente, o precavido (em excesso, até) — sempre conferindo meus pertences; sempre com uma meia, uma calça, ou qualquer objeto que possa fazer falta, em reserva na mala.

Crédito: Felipe Moreno

Jaicle é o meio termo: não chega a ser o tiozão neurótico durante o mochilão, como eu, mas faz a sua parte e pouco se perde. Tem uma bagunça nível médio. 

E, do outro lado da realidade, tem o Caio, o filho pródigo da trip, o irresponsável. É um generoso sem querer ser: até agora, de cidade em cidade, ele foi deixando seus pertences — em Florianópolis, numa festa, largou a bolsa com os óculos de sol; no mar gélido de Cabo Polonio, onde resolvemos, todos que estavam presentes, nadar pelados, a força das ondas lhe arrancou cueca e shorts, que estavam pendurados na cabeça (veja que ideia). Teve que voltar para casa com a minha cueca emprestada e, dessa vez, não foi o único: Emily, nossa colega inglesa de viagem, também deixou de presente para Iemanjá calcinha e sutiã. (A beira do mar de Cabo Polonio já é quase um brechó.) Foi um show de nudez em plena praia deserta. Digno de mais uma regravação de Lagoa Azul.

Crédito: Felipe Moreno

Retomando a conta: Caio também perdeu um saco de tabaco, o cachecol e, por fim (por enquanto), a cuia de chimarrão. Se continuar nesse ritmo, ele termina a viagem feito um monge: apenas com a roupa do corpo, completamente desapegado das coisas materiais. Afinal, em eufemismo máximo, ele é isso: um desapegado. Falando em roupa, o mesmo Caio teve a audácia de trazer apenas duas peças finas de manga comprida para toda a viagem. (Está esperando comprar ponchos baratos na Bolívia.) Pegar o outono-inverno em Montevidéu, Buenos Aires, Assunção, com apenas duas flanelinhas finas e, para não dizer que só, uma malha também fina, dessas básicas, da Hering.

Tive que emprestar um casaco decente e ele também já comprou uma jaqueta na feira de Buenos Aires. Ele ainda não se “desprendeu” de nenhuma das duas peças. Jaicle, ainda nos primeiros dias, cometeu um ilícito fundamental: entocou a cobertinha individual do ônibus e, muito inteligente, deu um ótimo fim à peça: recortou em três tiras e fez um cachecol útil e estiloso para cada um. Acredite: dos cachecóis customizados, Caio já foi capaz de perder dois. O próprio e, juro, enquanto escrevia estas linhas, ele me admitiu: “Também perdi o seu, que você me emprestou, depois de eu ter perdido o meu”. 

Buenos Aires, Argentina, 16 de maio de 2018

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